4.10.07

De cavalo para burro

Na Feira de S.Mateus, não a de Viseu, mas a de Elvas, que também é muito boa, tem imensos stands de automóveis e isso, diversões até, juntavam-se há cerca de 63, talvez 65 anos, ou mais ou menos, todas as famílias cujas vidas se desenrolavam nas cercanías daquela cidade. O evento não era para menos, a Feira de S. Mateus era o evento, i.e., a única altura de alguma agitação, folia e festividade num Alentejo miserável, trabalhador e explorado.

A duração: uma semana. As parentelas vinham nas suas carroças lá de muito longe, tipo 4 quilómetros, ou mais, 50, por exemplo, e juntavam-se todas nas redondezas da feira. Ali se pernoitava, comia e bebia. A gestão social era feita pelo animal tractor da carroça. Não seria o modelo destas últimas a condicionante ou indicativo do estrato social pertencente, mas o próprio quadrúpede. As três classes, como hoje temos os jipes, os utilitários, os comerciais e os Pandas e 4L, eram, por ordem decrescente, cavalos, machos, burros.

Numa das edições desta feira, um senhor, desprovido de qualquer preconceito, estacionou a carroça, com o asno de sua propriedade, junto a um grupo de fidalgos detentores de nobres equídeos e híbridos funcionais. A reacção, que não tardou um par de horas a surgir, veio de alguém da alta sociedade, cujo Equus caballus, de porte elevado e cor límpida, se encontrava em animado convívio (não tão animado assim) com o de estrato social inferior.

Com algum tipo de receio que o intercâmbio entre os animais pudesse conspurcar a limpidez e rígida estratificação social em vigor na altura, a ameaça ao proprietário do jumento foi breve, mas clara: "Ou você tira já daí o burro ou tratamos-lhe da saúde!"

O ameaçado, irado não só pela ameaça mas também pelo motivo da mesma, pegou na vara de marmeleiro com a qual estimulava o jerico, empunhou-a bem alto e disse: "ai querem-me tirar daqui mais a minha família por causa do burro?!Então venha de lá o primeiro!".

Esse senhor era o meu bisavô.

p.s. Nem o meu bisavô nem a família dele arredaram pé. Nem o burro, já agora.

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