22.8.07

Estórias do Bairro #1

Próximos do Verão, num calor que já se pressentia e uma sede a apertar, o Sr. Coelho, cota assim para os seus cinquenta e poucos, com algum estilo e atitude, desafia o Paulito dos putos, que se encontrava de patins em linha: "Paulito, se desceres esta rampa ofereço-te uma coca-cola". O Paulito, esclareço, era talvez o mais traquina e psicologicamente instável daquele bairro. Com um sorriso maroto e uma atitude fogosa (para verem como isto funciona, a irmãzita dele, na altura com uns 6 anos, pegou num bom pedaço de ranhoca que lhe tinha saído do nariz e pôs-me a fugir dela, estaria eu nas 16 ou 17 primaveras. Uma situação assaz constrangedora, portanto)ele lá se aprontou. As nossas consciências diziam-nos "Avisa o Paulito para não descer, avisa o Paulito para não descer que é melhor, senão ele ainda se aleija". Mas deixemo-nos de rodeios. Todos sabíamos, a bem da risota geral, que a viagem do Paulito por aquela rampa abaixo (em cima dos patins, ou não) começou assim que o Sr. Coelho acabou a frase.
A rampa teria cerca de 10 metros, e era constituída por gravilha grossa, aguardando ainda um revestimento a cimento que a Comissão de Moradores tinha já pedido à Câmara.
Assim, usando, abusando e criando, talvez até, uma coragem que ao Paulito conhecíamos e fomentávamos (pelo menos naqueles minutos), lá vai ele, rampa abaixo. Todos ríamos quando ele partiu. Todos deixámos de rir quando ele se espalhou 3 vírgula qualquer coisa metro a seguir. Mas o Paulito, qual animal selvagem de orgulho ferido, desceu o resto da rampa, ainda que não de uma vez só.
A imagem final era assustadora. O sangue vertia de ambos os joelhos, testa, cotovelos e um pulso. O Paulito, com uma calma que só os futuros psicopatas conseguem ter, descalçou calmamente os seus patins em linha e subiu a rampa que tão duramente o tinha castigado perante os nossos olhares piedosos. coitado do Paulito. No entanto, uma vez chegado ao topo da mesma, são estas as primeiras palavras do traquina rapazola:
"Sr. Coelho, a minha Coca-Cola é fresca e com limão, se faz favor".

A primeira

Foi quando a avó, lavando a loiça no alguidar à sombra de uma oliveira, o deixou debaixo de uma mesa rodeada de cadeiras para ele não sair. E não saiu.

Notas de praia #2

A felicidade tem um nome: Restaurante Tonico, em Paredes da Vitória, Pataias (cerca de dez quilómetros a sul de São Pedro de Moel).

21.8.07

Notas de praia #1


A imagem tinha tudo para ser humorística, ou repugnante, se preferirem. O pai, barrigudo, muito, mesmo muito, cordão de oiro ao pescoço, os calções já por baixo do último pneu, o bigode farfalhudo, óculo de sol com lentes à campeão e um boné, talvez, das bombas da Galp da Baixa da Banheira. No fundo, alguém que, entre outros factores, há muito deixou de ver a ponta dos pés ostentando a posição erecta.


A mãe e os dois filhos, não das figuras que suscitam mais contemplação nos areais (à excepção de algum voyeurismo desviante), deitados a queimar, dormidos, dormentes quiçá, o bronze faz as pessoas mais bonitas, dizem. A aparência é tudo. Um dos rapazolas, seguindo as pegadas dos progenitores, com umas boas dez dezenas de Quilogramas das quais uma percentagem não inferior a 30% estaria claramente em excesso, ferrado, vermelho como o pimentão de horta, famosíssimo e inigualável tempero alentejano.


O outro petiz, com alguns dentes que não viam pasta dentífrica há, correcção, que nunca devem ter visto pasta dentífrica, também contemplativo, sonhador, sobre a toalha. Cabelos grandes, oleosos, num resquício qualquer de um grunge definhante com um puchinho a apanhá-los.


Por fim, a mãe. Orca. Grande. Parecia ter sido apanhada pelo acaso numa qualquer traineira e abandonada à sua sorte tendo dado à costa e, se efectivamente uma, teria honras nas notícias das oito. Orca deu à costa alentejana . Biólogo tenta descobrir razão do desnorte do animal. Provavelmente terá sido ferida por uma rede piscatória dedicada às sardinhas. Incorrigível. Inenarrável.

Posto isto, o volte-face.

O senhor ultra-bonacheirão levanta-se e observa companheira e filhos. Pára. Dois passos, uma observação atenta e cuidada com e sem óculos. Contemplação. Uma espreguiçadela e lá vai ele. Saco de praia da esposa, com estrelas do mar e peixinhos amarelos, saca do protector solar. Piz Buin factor 40. O que se segue foi, asseguro-vos, da maior ternura que já vi nas praias nacionais. Aliás, no território nacional. Vindo dos mais improváveis personagens.

Um a um, borrifou-os a todos com a protectora substância. Com cuidado, dedicação, devoção, a minha pele arrepiou-se, garanto. Os filhos, deitados na sonolência profunda nem pelo pulverizador deram. Mas este, o senhor mais velho, o pai, enquanto borrifava a mulher não se borrifava nela. E isto foi tudo.

Cabelo para o lado, borrifa as costas. Sobe o fecho do soutien, terno, delicioso. Psscchhht, psscchhhht. Baixa mais um pouco, chega ao fondoschiena. E agora? Terror, receio, temor. Viro-me para o lado e leio o jornal? Não, já agora deixa-me lá ficar mais um pouco, que se dane, não há-de ser assim tão terrível.

Nada, simplesmente nada. O acto mais singelamente belo que assisti num passado recente. Carinhosamente, o senhor baixa um pouco, ma non troppo, as cuequinhas (tamanho XXXL, possivelmente) da senhora, dobra-as para dentro, borrifa-a, volta a subir, cuidadosamente, e só no final, depois da família tratada com a segurança que um sol forte exige, toma ele próprio as devidas precauções.

Belo.

Foi assim:


Foto:B

20.8.07

Um labirinto por ele construído do qual é impossível sair. O português, diga-se.

Daedalus and Icarus, por Charles Paul Landon, 1799 (Musée des Beaux-Arts et de la Dentelle, Alençon)

Quatro anos de imagens, sombras, maestrias e expressões labirínticas pelas quais nos deixamos querer, e perder. A excelência das palavras no rasto por elas deixado. Parabéns caro amigo e colega, por quatro anos de realidades tão interessantes como improváveis.

O atraso ao lazer desregrado e falta de acesso à rede se deve. As minhas sinceras desculpas.

3.8.07

Sinais dos tempos

Embrenhado nos livros e papeladas, messenger offline, "óptimo, não estou para ninguém, trabalho à vontade". Plinc. "plinc? Mas como, plinc?! Estou offline, não pode ser plinc". Plinc . Plinc de novo. Plinc. Outro plinc. Olho e pesquiso. Plinc. Barra de tarefas. Gmail. Chat. Chat do Gmail. Espanto. Suspense. Incredulidade. A minha mãe. Recapitulo, baralho, ordeno e volto a dar: a minha mãe no chat do Gmail. "Vais almoçar a casa?".

2.8.07

Coisas que incomodam, negativismos, pessimismos, et alia.

Pensar que:

  • no preciso momento em que meto um euro na máquina para tirar uma sande de frango saber, pensar mesmo, incorporar, que há gente a morrer de fome , naquele momento, como se me sentisse culpado por ter um euro. E sinto.

  • seja um privilegiado sem o ter pedido, como há os e as que estão, sem o pedir, condenados à morte rápida, jovem, dolorosa e impiedosa.

  • às vezes parece que está tudo a acontecer menos onde estou.

  • por vezes o sabor seja tão forte e outras tão fraco.

  • os pequenos momentos que me cativam me pareçam outras vezes nada mais que uma desculpa mesquinha para atribuir significado a uma existência mínima, passageira, frágil. Nada mais que uma outra folha de papel escrita e logo de seguida amarfanhada.
  • a omnipresença é inatingível.
  • alguns passados que mais não voltam tragam a melancolia, nostalgia, do que já fomos e não voltaremos a ser.
  • por vezes já seja a própria memória a ajudar nesses sentimentos, ao não nos ajudar na reconstrução desses passados.

Imaginários

Quando era pequeno, adorava ouvir as sirenes no meio da pequena cidade. Faziam-me sentir que vivia numa cidade mesmo grande, e era fixe. A imensidão urbana, a rede, a teia que envolve e agarra. E uma das melhores maneiras de simular isso era quando, com os meus amigos, ia ao primeiro Burger King que apareceu (ainda não havia MacDonald's por cá) nestas bandas em grande romaria comer um Whopper e a seguir jogar uns flippers.

Agora que sou crescido, detesto ouvir sirenes. Para além de já não conseguir sonhar que vivo numa cidade grande (não só por já não sonhar tão facilmente, mas também pela cidade que, sei-o, é tudo menos grande), sirenes são sinónimo de problemas. E quanto detesto problemas!

post scriptum continuo a ir ao Burger King e ao MacDonald's. E a adorar grandes cidades. Ironias do destino.

1.8.07

O bacalhau à Gomes de Sá sentimental

Voz doce, terna, consciente, consternada e amedrontada. Sempre fui tua, diz ela. Ele, olhando para o bacalhau à Gomes de Sá já moído e remoído no prato, com os olhos envoltos em lágrimas e um coração que o sufoca, um copo de vinho verde, Muralhas, que teima em estar cheio e um empregado saturante que se achega de novo à mesa e volta a perguntar :"Está tudo do vosso agrado senhores?".

"Não, traga-me só um pouco de coragem para enfrentar a mulher adúltera que amo, por favor. De resto, tudo bem, até o sal está no ponto".